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Com mãe, avó e bisavó prostitutas, filha decide não seguir o mesmo caminho e vai para a faculdade atuar pelos direitos das mulheres

“Minha filha é a primeira após quatro gerações de prostitutas a ir para a faculdade e o orgulho não cabe no meu peito”

“Quando criança, sempre quis ser professora. Mas acabei me prostituindo, como minha mãe, minha avó e minha bisavó.”

Esse relato é de Karina Núñez, 47, uma mulher que representa a quarta de geração de uma família de trabalhadoras do sexo no Uruguai — e que transformou essa história em ativismo.

Em seu país, ela é hoje uma líder sindical conhecida, tendo em sua agenda não só os direitos das mulheres e das trabalhadoras do sexo, mas também o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.

Vale lembrar que foi justamente “com a ajuda de outras mulheres” que Karina conseguiu propiciar aquilo que talvez seja o maior orgulho de sua vida turbulenta, sobre a qual ela conversou com a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

“Minha filha é a primeira após quatro gerações de prostitutas a ir para a faculdade e o orgulho não cabe no meu peito”, contou, falando de sua filha Valeska.

Porém antes de chegar neste capítulo, é preciso falar da própria infância de Karina — que ela define como um misto de pobreza, incertezas e muita prostituição.

A mãe dela chegou a deixar de se prostituir, por um tempo, pois um homem que ela conhecia quis tirá-la da subordinação a um cafetão e criar Karina como filha.

No entanto eram tempos de ditadura civil-militar no Uruguai, como em muitos outros países da América Latina.

“Ele virou então um preso político e nossa vida mudou completamente: minha mãe teve que voltar ao trabalho sexual.”

Lamentavelmente crescendo neste ambiente, o caminho dela logo se tornou o mesmo que de sua mãe, avó e bisavó.

“Quando você nasce no ambiente da prostituição, é muito difícil sair dele.”
“O grau de estigmatização em torno da minha forma de ganhar a vida gerou círculos não muito propícios para eu me desenvolver. Em um momento da minha vida, a tônica dos meus dias era a apatia em relação à sociedade.”
“Sempre achei que era preciso defender-se e, bem, se algo aconteceu com você, foi porque fez algo de errado — e você precisa aguentar. Eu não percebia que as coisas que me aconteciam eram produto de toda a vulnerabilidade que eu carregava na quarta geração de uma família de trabalhadoras do sexo.”

À sua frente estava a quinta geração, representada por suas filhas pequenas, Karina entendeu que queria romper este ciclo. E, para isso, percebeu que teria que lutar.

“À medida que fui derrubando barreiras e exigindo direitos para mim e minhas colegas, fui sendo reconhecida por elas como uma voz confiável.”

“Foram elas que me deram o título de sindicalista e tudo mais. Mas eu realmente queria ser a melhor versão da Karina.”

“Em 1999, denunciei uma rede de tráfico que levou duas gurias para a Itália e por isso fui espancada por nove cafetões. Fiquei internada na UTI por 11 dias e demorei três meses para caminhar novamente.”

“Tive que esperar sete anos para ser ouvida e para ver processado o guarda que me entregou para a rede (dos cafetões).”
“Mas hoje posso dizer que tudo isso valeu à pena.”

No entanto, apesar de desejar desde o início um caminho diferente para as filhas, Karina diz que a entrada na universidade não estava nos seus planos.

“Não é esse o tipo de coisa que você pode escolher quando é pobre”, conta a ativista.
“Na verdade, fui orientada por outras mulheres que, carinhosamente, me mostraram outra perspectiva. Elas me ajudaram a ver que eu poderia deixar de naturalizar o exercício do trabalho sexual para as meninas.”

Contudo, Karina tira seu mérito na chegada de Valeska à faculdade de recursos humanos, atribuindo isso à capacidade da filha de “desenvolver e explorar sua inteligência”.
Ainda assim, ela fala em uma satisfação “enorme” em ver a quinta geração de sua família chegando à universidade.

Sabe-se que a prostituição é uma atividade regulamentada desde 2002 no Uruguai, um dos países mais liberais a esse respeito na região.
“Acho que a América Latina precisa de um debate aberto sobre o trabalho sexual e sobre a autonomia dos corpos”, diz Karina, que apesar de se denominar uma “feminista popular”, admite que demorou a se reconhecer como tal.

“Se é real o preceito de que todos os corpos femininos são delas, por que então os corpos das mulheres que consciente e livremente decidem oferecer serviços sexuais não o são? Por que elas têm que ser tuteladas por outras mulheres ou pelo Estado?”, questiona, defendendo a regulamentação da atividade em outros cantos do mundo.

“O homem sempre pôde usar a mulher a troco de nada, e o fato das trabalhadoras cobrarem pelo que fazem me parece um importante símbolo de luta”, afirma, mencionando o trabalho não pago das esposas na limpeza da casa e no cuidado dos maridos e seus familiares.

Hoje, a principal pauta que move Karina é a aprovação de uma renda básica para trabalhadoras do sexo devido à pandemia de coronavírus.

“Podemos conseguir pelo menos que elas possam pagar pela moradia. Há muitas colegas que infelizmente ficaram sem-teto porque não conseguem pagar aluguel.”

A ativista é autora de “El ser detrás de una vagina productiva” (“O ser atrás de uma vagina produtiva”), já em sua terceira edição, está escrevendo um novo livro previsto para 2021, com uma série de contos sobre suas experiências reais.

“Por que você acha que eu luto? Por que sou paga para fazer isso? Por que gosto de estar na frente das câmeras?”, provoca a escritora em seu novo trabalho.

“Na verdade, você sabe por que eu luto? Porque se eu não lutar, outra pessoa o fará. Mas não com base nas minhas necessidades, mas nas deles. Não com as minhas perspectivas, mas com as deles. Não por causa da minha dignidade, mas sim por causa de seus privilégios”, responde a si mesma.

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